Explorando a dimensão argumentativa em processos de avaliação de instrumentos de políticas públicas: ampliando a ação pública

Freitas-Boullosa, Rosana De; da Silva Rodríguez, Roberto Wagner
Abstract:
A avaliação de instrumentos de políticas públicas vem sendo cada vez mais contestada como uma área ou atividade pertencente exclusivamente à chamada tradição positivista no campo de estudo das políticas públicas. As raízes de tal vinculação se remetem à própria criação do campo, a partir dos trabalhos seminais de Harold Lasswell. Em seu livro “Politics: Who gets What, When, How” (1951), Lasswell já sugeria uma postura predominantemente empírica para a individuação das consequências das chamadas políticas públicas, ou seja, das ações do governo, em seus diferentes níveis executivos, segundo sua própria proposta, imputando à avaliação um caráter de cientificidade empírica. Na idade de ouro da avaliação, em meados dos anos 60, uma crescente diversidade de metodologias que buscavam revelar as relações causais que estruturariam os resultados de programas e ações governamentais, propunham quase que em uníssono avaliações de tipo top-down, fortemente amparada no conhecimento laboratorial que o expert em avaliação deteria. A crença na racionalidade linear, no conhecimento especializado, no paradigma experimental e na correta redução da complexidade do objeto em avaliação em variarias possíveis de serem manejadas, conformavam boa parte do corpo cognitivo de tais atividades. Entre os anos sessenta e setenta, porém, o paradigma experimental ou quase-experimental passa a se confrontar com as primeiras críticas ao positivismo. Alguns filósofos e sociólogos, sobretudo franceses, começam a duvidar do caráter linear da própria produção científica que ocorria nas chamadas ciências duras. Entre os anos 70 e 80, Lauden (1977) Paller (1989), Deleuse e Guatarri (1987), Latour (1987), dentre outros, desenvolvem um tipo de sociologia da prática científica, na qual defendem que nem as verdades científicas mais extremas e de maior alcance de público seriam verdades absolutas, mas, sim, verdades construídas a partir de uma construção sobre a realidade, a qual dependeria sobremaneira da posição de quem as teria descoberto. Passavam a tratar, portanto, as verdades científicas como argumentos; e suas construções como disputas argumentativas. Toda esta nova discussão, a qual podemos chamar de pós-positivista, è trazida para o campo de estudo das políticas públicas por autores, quais Gusfield (1981), Kingdon (1984) e Edelman (1988), dentre outros, mas é Frank Fischer (1998) a tentar reunir estes esforços em um arcabouço filosófico mais aplicado a tal campo, enfatizando a crítica às reduções empiricistas empreendidas pelos chamados neopositivistas. Em câmbio, juntamente com Forester (1993), propõe uma virada paradigmática argumentativa (argumentative turn), mais tarde revista com Gottweis (2012). No campo mais específico da avaliação de políticas públicas, ou de instrumentos de políticas públicas, Scriven é um dos primeiros a se manifestar sobre esta discussão. Para ele, “os modelos clássicos de raciocínio fornecem inadequadas e, de fato, sérias considerações enganosas da maior parte do raciocínio prático e acadêmico - o raciocínio da cozinha-cirurgia-workshop, dos tribunais-paddock-escritório-campo de batalha; e das disciplinas…” (SCRIVEN, 1987 apud FISCHER 1998). Anos antes, ele mesmo já havia revelado um forte ponto de tensão entre as dimensões descritiva e prescritiva em avaliação, lembrando que a “investigação avaliativa deve(ria) produzir como conclusão exatamente o tipo de afirmação que os cientistas sociais dizem ser ilegítima: um juízo de valor ou mérito” (Scriven, 1974, apud Ballart, 1996, p. 325). E, de fato, insiste por quase toda a sua vida acadêmica tece uma contundente crítica sobre as lógicas formais que acabam hiper-valorizando o peso das evidências científicas e de seus processos de verificação em processos avaliativos. Sua proposta de avaliação formativa leva em consideração a dimensão argumentação dentro do processo avaliativo, reforçando intrínseca capacidade da própria avaliação funcionar como um contexto de aprendizagem (1974; 1987). Como ele, a partir dos anos 90, outras metodologias de avaliação começam a ser desenvolvidas, buscando levar em consideração a participação dos atores. Tal participação, todavia, quase sempre se limitava a construção de estruturas de conversação avaliativa cujo foco era a promoção do diálogo entre os atores que eram considerados como importantes para o alcance de um resultado o plural e o mais aberto possível. Em outras palavras, tratava-se de avaliações que buscavam, e ainda buscam, dar voice (voz) aos atores envolvidos no objeto de avaliação, podendo ser, inclusive, alinhadas ao neopositivismo. Sem deslegitimar tais esforços, garantir a participação dos atores em si era mais importante do que garantir a presença plural dos discursos em si, como se estes fossem derivativos diretos dos atores. De um modo simples, o ator seria o produto e o discurso o sub-produto a ser considerado.<br /> A mudança do foco do ator para o discurso provoca uma mudança razoável na compreensão dos processos avaliativos. O que à princípio poderia parecer mera troca retórica, ou inversão de entradas, acaba por se revelar uma fértil possibilidade de reconexão teórico-metodológica entre os conceitos de políticas públicas e de avaliação de políticas públicas, além do melhor ancoramento à chamada tradição pós-positivista. Alguns autores já começaram a apresentar consistentes propostas metodológicas nesta direção, concentrando suas premissas na não dissociação entre valores e fatos. O “modelo do conselho” de Jennings (1987) propôs uma estrutura de conversa com muitas vozes a partir dos diferentes discursos presentes na construção de problemas considerados como de relevância pública, mas ainda vincula com certa força a produção argumento a atores, além de aceitar a primazia do analista de políticas públicas, mesmo que este funcione como um facilitador do diálogo (entre atores). Tal modelo, que abarca mas não se delimita ao escopo avaliativo, reconhece a natureza processual das políticas públicas, bem como sua multiatorialidade. Hanberger (2001) propõe um outro modelo para tentar abarcar esta mesma natureza processual, estruturando-o em quatro categorias avaliativas: problem situation, Policy, Implementation e Consequences. Cada uma delas cruza-se com uma pergunta orientadora (qual o contexto?; quais os atores chave?; qual o problema de policy?; quais as variáveis relevantes e os critérios para os resultados?), gerando mum conjunto de interrogações sobre os argumentos que estruturariam os objetos em avaliação. Apesar de apoiar-se em uma base teórica pós-positivista, o resultado parece mais uma adaptação de um modelo neopositivista de avaliação participativa comprometida com a elaboração de um juízo para tomada de decisão. É, todavia, o próprio Fischer a avançar com mais afinco um modelo de avaliação, o “critical evaluation”, que melhor reflita a tradição pós-positivista. Ele propõe quatro níveis de avaliação: um primeiro, largamente utilizado, que não somente orienta a ação de muitos avaliadores, como também restringe sua ação até ele, chamado “verificação técnica”, marcado pela obediência aos princípios empíricos. Um segundo, mais complexo, chamado “situational validation of policy goals", no qual a avaliação se desapega dos princípios metodológicos da verificação empírica para as regras lógicas de primeira-ordem do discurso normativo, a partir da assunção de um quadro de valores. O terceiro, ainda mais complexo, intitulado “system vindicativo of value orientation”, que implica no exame e validação do objeto para um sistema social mais amplo, de volta para uma postura empírica, inclusive com a participação do chamado conhecimento científico. E, por último, o nível da “Racional social choice”, já em um estado avançado de produção de controvérsias, que objetiva estabelecer as bases para a escolha de um tipo de vida (“way of life”) ao invés de outro, a partir da construção (realizada na sequência dos níveis anteriores) de um quadro específicos de valores socialmente compartilhados. São os argumentos, portanto, em suas mais simples unidades analíticas, ou seja, os valores, que adquirem protagonismo no modelo de Fischer. E é justamente a partir da compreensão e do compartilhamento de tal protagonismo, mas também da compreensão de políticas públicas da abordagem da Mirada ao Revés (BOULLOSA, 2013), que foi desenvolvido um modelo de avaliação de políticas públicas que objetiva a ampliação da ação pública, entendida como o lócus de produção e articulação da razão prática argumentativa. Para começar, políticas públicas, para a Mirada ao Revés, é compreendida “um fluxo resultante de práticas de uma multiatorialidade ativada por e no interesse público, em contextos historicizados de governo de problemas considerados de relevância pública ou em contextos historicizados de preservação de bens também considerados como de relevância pública” (BOULLOSA, 2013), onde tais contatos de governo são confirmados por um incerto conjunto de argumentos e ações. Trata-se, portanto, de um construto analítico que reconstrói, ressignificando tal fluxo progressivamente, no qual instrumentos são compreendidos como condensações de valores, significados e significâncias, que tentam modelar realidades e fatos sociais. Com isto, o modelo de avaliação de instrumentos de políticas públicas passa a ser, portanto, um modelo de avaliação perceptiva de um condensado de valores, significados e significâncias. Ou, em poucas palavras, de argumentos. Trata-se de uma avaliação de percepção porque a realidade a ser construída pela equipe de avaliação é somente mais um dos argumentos que estarão presentes no próprio contexto ou fluxo de políticas públicas. A partir desta reorientação, o modelo propõe uma investigação avaliativa portanto, propõe, assim, a distinção analítica de três níveis complementares de argumentação: um primeiro, relativo ao quadro de argumentações (seus desdobramentos e sustentações empíricos) presente no instrumento objeto de avaliação; um segundo, relativo aos quadros de valores que subjazem as argumentações (inclusive com suas sobreposições, condições e contradições); e um terceiro, relativo aos espaços da prática aumentativa, voltados a construção de um quadro valorativo-avaliativo produzido no contexto de tal processo avaliativo, como espaço privilegiado de ação pública e um quarto, voltado à construção de meta-instrumentos avaliativos, já com maior espaço para esforços empíricos alinhados aos valores construídos, como foi o caso do Censo Suas (2005-2009), que passam a responder melhor as demandas de transformação social, e, consequentemente, de avaliação dos instrumentos de transformação social, até que novos argumentos sejam produzidos e passem a conquistar mais espaços na disputa argumentativa que caracteriza os processos de produção de políticas públicas. Este modelo, além de ter sido parcialmente testado na experiência de construção do Censo Suas (2005-2009), no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social; vem sendo aplicado em outras experiências avaliativas desenvolvidas no âmbito do Grupo de Estudos Processos de Inovação e Aprendizagem em Políticas Públicas e Gestão Social, da Universidade Federal da Bahia.
Área(s) temática(s):
Año:
2016
Tipo de publicación:
Paper/Extenso Congresos GIGAPP
Número:
2016-020
Serie:
VII Congreso Internacional en Gobierno, Administración y Politicas Públicas. GIGAPP 03-05 octubre 2016.
Dirección:
Madrid, España
Organización:
GIGAPP. Asociación Grupo de Investigacion en Gobierno, Administración y Políticas Públicas
Mes:
Octubre
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